Hoje eu ia passando pela praça, aqui perto de casa, e encontrei Paulão. Há quase dez anos que não o via. Era meu colega de faculdade, nas disciplinas que acabei cursando junto com a turma de Rádio e TV de 1990.2, que me adotou. Se eu tivesse pensado melhor, tinha apontado Paulão como responsável por um dos maiores micos por que já passei na vida. Enfim, nunca é tarde para relembrar... Depois de ter sido irresponsavelmente reprovada em EPB, de tanto gazear aula para ouvir Siba e grande elenco tocarem violão nos corredores do CAC, fui cursar a disciplina de manhã, para não atrasar meu curso. O professor queria que apresentássemos um seminário, e meu grupo, formado por meninos do primeiro período cheios de vontade de produzir, resolveu fazer um vídeo discutindo a questão da "Pena de Morte". A gente era uma turminha muito afoita, devo admitir. Como a UFPE não permitia que saíssemos com a filmadora sem um técnico responsável, e como o técnico irresponsável não trabalhava no fim de semana, pegamos a máquina da minha mãe emprestada, montamos um pau-de-luz improvisado com uma vara de goiabeira e uma lâmpada de 500W e saímos em campo. Uma das entrevistas mais importantes que conseguimos agendar foi com o ex-arcebispo de Olinda e Recife, Dom Helder Câmara.
Além de Paulão e de mim, em nossa equipe estavam Paula, Ricardo e Ulisses - esse foi o embrião da futura Pruma, produtora com muitas histórias. Como todos os outros faziam Rádio e TV e eu, além de estudar Jornalismo, estava um semestre à frente deles, fiquei encarregada de comandar as perguntas, enquanto cuidavam da produção. E foi um verdadeiro desastre. Entramos na Igreja das Fronteiras, onde Dom Helder morava, na Casa Paroquial. A primeira providência dos meninos foi enganchar um fio na xícara onde estava o chá do pobre do velho, e derrubar em cima de uma beata que estava com ele. Paulão (1,90m, 150kg) gritava feito um louco - "Ulisses, caralho! Sobe esse pau que ele tá aí é pra subir mesmo" - enquanto uma freirinha se benzia. Mais adiante, acho que pediu para o entrevistado levantar as mãos para o céu - "Dom Helder, faça aquela posiçãozinha que o senhor gosta de fazer" - mas ele nem se mexeu. A vergonha foi se acumulando e, no fim, eu pedi desculpas. "Dom Helder, nos perdoe, ainda estamos começando", etc, etc. A beata que estava com ele retrucou com ar irônico - "já começaram bem, hein?" - mas a gente ainda poderia ter se retirado com alguma dignidade, se Paulão não resolvesse contribuir. Enquanto o santo senhor dizia que eu não me preocupasse, que ele já estava acostumado com jornalista etc e tal, o jumento achou de interromper. "Pode deixar, Dom Helder. Se o senhor ainda estiver vivo quando a gente se formar, a gente vem lhe entrevistar outra vez".
Apesar dos pesares, o vídeo ficou até bonitinho, perfeito como trabalho amador de uma turma de primeiro período que queria ilustrar um seminário de EPB. Mas Paulão ficou encantado com a obra-prima. Eliminou os créditos originais (que, com todo defeito, eram bons; demonstravam o talento latente de Ricardo, hoje um editor maravilhoso, e combinavam com a luz e movimento meio toscos do filme inteiro) e substituiu por umas ceninhas cor-de-rosa, florzinhas, cascatas, cachorrinhos, com a música "What a Wonderful World", de Louis Armstrong. Que porra tinha a ver aquele mundo maravilhoso de Walt Disney com a pena de morte, nenhum dos outros quatro conseguiu entender. Mas a megalomania de Paulão não tinha limites: ele começou a inscrever o vídeo em tudo que foi mostra da cidade. E, claro, o nome da gente aparecia piscando no fim da grande obra. O desespero foi ao auge no dia em que ele confessou que ia mandar uma cópia para Jô Soares. Aí Paula, que é a mais mala sem alça de todos nós, pediu a matriz emprestada e, 'sem querer', aplicou a punição capital à "Pena de Morte".
Em seguida, eliminamos Paulão da jogada e agregamos André ao grupo, transformando-o numa produtora. Tínhamos vários grandes trabalhos em mente, mas só realizamos filmagens de festinhas de aniversário. A primeira, não esqueço: era de Allanzinho e Karolinny. Loucos pra comer brigadeiro, fomos os cinco (!) participar da filmagem. Sem nada no bucho, que era pra aproveitar. Que ilusão. Ninguém nos ofereceu coisa nenhuma. Já no fim da festa, com a garganta seca e o olho doendo depois de segurar o pau de luz por três horas seguidas, eu pedi um copo de água à dona da festa, que ficou com vergonha e me deu guaraná. Na ilha de edição, entre (d)efeitos especiais de aviõezinhos e corações e o som terrível do Xou da Xuxa, a gente só via os closes que Ricardo, o câmera oficial, deu a noite toda na bandeja das coxinhas.
A Pruma não rendeu dinheiro, mas grandes amizades e boas histórias. Uma das melhores foi quando Tom Jobim veio a Recife - salvo engano, foi a última vez que nos visitou antes de morrer. A gente se plantou na frente do hotel e conseguiu marcar uma entrevista com ele: Tom não quis dar entrevista a nenhuma emissora, nenhum jornal, mas aceitou conversar conosco quando soube que éramos estudantes. No dia marcado, chegamos quarenta minutos mais cedo e montamos toda a parafernália no hall do hotel. Nervosa, eu sentei com Paula num sofá e ficamos 'treinando' as perguntas que faríamos, enquanto Ricardo e Ulisses filmavam: "Tom Jobim, o que acha disso? Tom Jobim, como vê aquilo?" No sofá da frente tinha um gringo muito queimado de sol, com uma camisa havaiana horrorosa, olhando pra nós duas. "Que gringo mais assanhado, esse", concordamos Paula e eu.
Daqui a pouco, Tom desce, de chapéu na cabeça, charuto na mão e sorriso nos lábios. "Este aqui é meu violonista, Tião Neto", apresentou ele, chamando o gringo - que gargalhava, enquanto Paula e eu queríamos morrer.
Gravamos quase uma hora de entrevista e eu, tiete, ainda roubei o cotoco do charuto pra mim.
Quando fomos assistir à fita, quase mato Ulisses: ele ficou virando a câmera de cabeça pra baixo, segundo ele "para fazer movimentos experimentais". A gente quis esguelar o brilhante gênio: "experimenta quando tiver filmando tua mãe, fedapê!".
Da tarde feliz que passei com Tom e me fez admirá-lo não só como artista, mas ser humano, só ficaram as lembranças. O irmão de Paula gravou um filme em cima da fita. E a empregada lá de casa jogou o charuto fora.