Perdoai a boca, não salta como os olhos. Perdoai os olhos, guardo sua nudez em minha boca. Não desejo beber outra sede, quero fechar os lábios ao café, ao vinho, à água. Nada brilhará mais os dentes. Deixarei o mel de sua fome crescer em mim com a rapidez da barba. O gosto do seu sexo não é doce, não é salgado, é ao mesmo tempo toda a mesa.
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Respeito mais as ausências, deixo as pessoas passarem em minha frente, não ri tanto como agora. Aceito críticas com o desprendimento de elogios. Nunca amei tanto as crianças ou a infância que me faltou. Os pátios têm a religiosidade de vitrais. Observo os cachorros como anjos atrapalhados acomodando suas asas. Fico comovido na janela com o jeito que lambem as patas, os becos das patas. Sou capaz de demorar três horas olhando os cachorros dormindo, para não aprender nada a não ser os cachorros dormindo. O apaixonado é um comovido à toa. Pára de repente em si como se fosse chuva. Pula de repente de si como se fosse tarde.
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Vontade de conversar com você mais do que tive de me conhecer. Vontade de morrer o mundo e ser pego em flagrante. Vontade de encolher a cidade em um quarto. Vontade de respirar sua respiração, pensar ter falado e não falar. Vontade de não ter existido antes para não me contradizer. 
O apaixonado não é egoísta. Ele larga seus hábitos, para conhecer verdadeiramente quem ele gosta. Faz greve de sua personalidade. Muda a rotina, os horários, se esvazia dos preconceitos. No momento da paixão, cria necessidades súbitas. O que considerava fútil torna-se útil, o que considerava útil vira fútil. Se ele não gosta de bossa nova e ela sim, sairá à cata de tudo o que houver sobre o assunto. Vai se transformar em um especialista numa semana. Cursos intensivos são perfeitos aos apaixonados. Mais do que isso, não presta atenção. Menos do que isso, não convence.
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O apaixonado é um ansioso. Precisaria ser dispensado do emprego durante o período. Suas distrações são maiores do que os acertos. Qualquer empresa deveria proibir a presença dos apaixonados - eles não estão nem aí. A produtividade cai, os contatos rareiam, as desculpas aumentam. Não entendo como não existe uma licença maternidade e paternidade para a paixão.
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O apaixonado é um feriado. Ele se perde no trabalho porque está concentrado na falta. Ele é a própria falta. Preste atenção no jeito de um apaixonado sentar, torto e desajeitado, ele não ocupa toda a cadeira, é como se dividisse seu canto com alguém imaginário.
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O apaixonado pode fazer as cenas mais hilariantes na rua sem perceber. Chorar no meio-fio da calçada, arrepiar-se de ciúme, gritar diante de um bar lotado. Seu sentimento é uma pessoa. O apaixonado muda de opinião com receio de ser abandonado e se abandona para se encontrar diferente.
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Ninguém entenderá o apaixonado a não ser ele mesmo. Ele volta a fazer amizade com sua solidão. 
Baixei todas as roupas do meu guarda-roupa, não tive nenhuma compaixão com alguma peça. Deixei somente os conjuntos que realmente uso. Metade do armário foi embora. Antes ficava em dúvida. As roupas eram mais lembranças do que pano. Perdoava as manchas, os rasgões, os trechos puídos. O apaixonado é um desmemoriado. É óbvio que tomei a atitude depois de comprar três conjuntos de camisas, calça e sapatos. Não sou tão forte assim.
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O apaixonado precisa de uma gaveta para colocar seus pertences de bolso. O resto ele vai esquecer. A bandeja do aeroporto já é suficiente.
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O pulmão do apaixonado é como o fígado ao bêbado. A abstinência só faz pensar bobagem. Não se é inteligente na dependência, mas se é muito mais engraçado.
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O apaixonado perde o apetite. Um prato é muito distante. Come para não desmaiar. É movido a sexo. Ou pela antecipação do sexo. Realiza regime forçado. Deve ser o excesso de saliva que atrapalha a dentição.
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Os monges invejam a crise de silêncio do apaixonado. Ele pesca horas a fio uma palavra e volta sem nada para a casa. Desossa o peixe que não existe, frita o peixe que não existe e lava a louça que ficou intocada. O apaixonado tem uma imaginação intensa como a de um terreno baldio.
Um dos problemas do apaixonado é que ele estranha novamente seus defeitos. Depois de aceitá-los com generosidade, depois de uma convivência pacífica e conformada, descobre que foi tolerante e revisa o peso, a altura e a massa muscular. Tudo é subitamente esquisito, seja a cintura, sejam as rugas, sejam os pés primitivos. O apaixonado deixará de conferir o espelho com tanta pressa. Se o par comentar algo que não gosta, não saberá disfarçar o mal-estar.
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O apaixonado entra na relação independente e autônomo, afinal já passou por relacionamentos anteriores e pretende usar sua experiência. Finalmente vai colocar em prática o breviário da sedução e exercitar os conselhos dados aos amigos. No começo, parecerá implacável, seguro e confiante. Criou uma fortaleza de dar medo. Depois de alguns beijos e de entortar o pé sem perceber, sacrificará as táticas e será sincero como nunca na vida. Falará dos seus medos, confessará segredos que nunca ousou contar, irá se declarar de modo precoce contrariando sua idéia de que não poderia fazer isso. É necessário colar o adesivo de "frágil" no apaixonado, não sobrevive de um endereço a outro, de uma certeza a outra. É um corpo em mudança.
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Não é aconselhável escutar uma conversa entre apaixonados. Que idioma é aquele? Filme eslavo? Nada sociável. Nenhum dos dois entenderia se não houve a paixão entre eles para explicar e traduzir. Cheia de sinais, arrebatamentos e questionamentos imprevistos. Uma conversa epilética, com ninguém por perto para segurar a língua.
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O apaixonado avisa que não quer se envolver para depois cobrar cada minuto da separação.
A repetição é o que o apaixonado mais gosta. Ele fala a mesma coisa durante horas sem enjoar. O vocabulário torna-se de uma criança de cinco anos. Nenhum apaixonado consulta o Aurélio. Pois a linguagem separa.
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O bar para um apaixonado é como se fosse sua casa. Ele não repara, mas espalha os casacos e as bolsas pelas cadeiras. Não tem pudor, não pensa no pudor, apaga o restante dos fregueses, quer ficar junto de qualquer jeito.
Com apenas um casal de apaixonados, o bar está lotado.
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O apaixonado não consegue decidir nada. Recebe um cardápio e faz de conta que é uma televisão. Tudo está bom, tudo ele aprecia. Pode atravessar a pé uma cidade sem se importar com o cansaço ou dar voltas no mesmo bairro de carro e ainda elogiar as ruas.
Ri mais do que fala. Aliás, o apaixonado emprega a risada para dizer sim.
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O garçom reconhece o apaixonado pelo braço ansioso de náufrago.
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O apaixonado se preocupa com a roupa de baixo. A mulher não usará time misto. Qualquer momento pode ser derradeiro.
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Quando está nervoso, o apaixonado segura as mãos da companhia para ganhar tempo com o tato.
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O apaixonado gosta de saber se a pessoa está sentindo o mesmo do que ele, mas precisa ser igualzinho. Fica horas no telefone acarreando os sintomas com o par. Descreve os efeitos da paixão em seu corpo com minúcias de uma doença a um médico.
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Acorda toda manhã de ressaca de algo que não bebeu. Como se sua vida fosse emprestada.
O apaixonado é o último a acreditar que está apaixonado.
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Muda de idéia com facilidade. Fica seguro para se mostrar desesperado em seguida. Dois minutos é muito tempo para um apaixonado.
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O apaixonado não respeita sinais de trânsito. Dentro de si, um engarrafamento interminável. Passa o dia inteiro entre a primeira e a segunda marcha, entre a primeira e a segunda pessoa do singular.
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Joga xadrez com a música.
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Caminha envaidecido com marcas no corpo. Alisa as unhadas como esboços de uma tatuagem.
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O apaixonado desaparece do trabalho de repente, de modo discreto. E reaparece espalhafatoso.
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O celular do apaixonado está fora da área de cobertura ou desligado.
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O apaixonado é um guia completo dos bares da cidade.
Esquece dos amigos e só volta a falar com eles depois da primeira crise.
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É possível montar um retrato falado do apaixonado a partir das pessoas que freqüentam rodoviárias e aeroportos. Ele está sempre partindo com as vestes do corpo.
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O apaixonado perde bem mais do que a cabeça.
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O apaixonado não aprendeu a mentir. Sua sorte: mente tão mal que se assemelha a uma verdade.
(Texto de Fabrício Carpinejar, ilustrações de Marc Chagall - o pintor que em minha opinião melhor soube expressar esse sentimento)