Ela está construindo seu próprio blogue, mas tem vergonha de mostrar. Por isso, não dou o nome nem o endereço da menina linda, 'larger than life', que escreveu o texto abaixo, e que eu quis partilhar com vocês, porque a cada dia entendo mais porque a sinto tão próxima de mim. Um beijo, querida.
"Foi assim. Pelo menos do que me lembro. Lá pelos anos 80, eu no começo da minha adolescência, hormônios em estado de ebulição, decidi ir com umas amigas ao que na época se chamava 'semana-pré' de carnaval em Boa Viagem, digo decidi mas, na verdade, foi mais o caso de mainha ter me deixado ir. Bem, naquela época não existia essa de bloco de trio elétrico, camisa de bloco, sei mais lá o que... naquela época todo mundo era da pipoca, melhor assim. Gelinho na barriga, halls na boca, leite de rosas e cabelo lavado, eu à procura de um paquerinha, nada demais, só um sorriso já me valia a noite, pois eu também fui inocente um dia. Eis que surge, nem lembro de onde, nem como, quem aqui vou ter que chamar Bomba do Hemetério, pois apesar de carinhosamente bem lembrar do seu rosto, não tenho a menor idéia do nome dele. Não era exatamente o tipo que uma mãe de uma adolescente de classe média ia querer pra uma filha casar, mas nem tampouco meu amor por ele foi um amor homem-mulher. Ah, foi bem mais que isso.
Lembro-me bem que ele estava descalço, porque não tinha mesmo sapatos pra calçar, usava uma calça social que me parecia duas vezes o número dele e um cinturão preto que prendia com força a calça na cintura, e uma camisa velha, muito velha, daquelas tipo da Hering. Me pareceu bizarra aquela combinação de roupa. Era bem baixinho, muito magro, lembro de uns braços fininhos, de pele bem seca saindo pela camiseta. Devia ter uns 40 anos, mas pensando bem, como é que se pode deduzir a idade do sofrimento em flor? Só sei que tinha uns olhos imensos, que gritavam fome!. Ficamos amigos. Não lembro mesmo o que a gente conversava, do que ele me disse, lembro que ele falou que tinha conseguido a passagem do ônibus pra conhecer o carnaval e que só voltaria pra Bomba do Hemetério quando o carnaval acabasse e ele conseguisse a passagem de volta. Ficava por ali durante o dia, olhando os prédios bonitos.
Bem, o que aconteceu foi que marquei com ele todas as noites na mesma barraca de coco, pro divertimento geral das minhas amigas... E um dia por algum motivo não pude ir, no dia seguinte quando reapareci, Bomba (acho que já estávamos íntimos) teve a maior crise de choro quando me viu, com muitas lágrimas mesmo, que vexame! Eu sabia que ele era um atraso pra as minhas paquerinhas e sabia tambem que nunca mais ia vê-lo, mas eu também sentia o quanto eu era importante pra ele, isso eu sentia mesmo. A semana-pré acabou, não lembro como foi o nosso adeus, talvez ele já nem se lembre mais de mim, sabe-se lá o que o futuro reservou praquele homem único na semelhança de um Brasil com fome. Mas, eu nunca me esqueci dele, e o amei à minha maneira. O intocável da mais baixa casta em Arundati Roy, a personificação da geografia da fome de Josué de Castro.O amei por ter me ensinado que não se pode ver a miséria como quem vê uma fileira de formiga. Cada ser é único. E como disse Guimarães Rosa: a colheita é comum, mas o capinar é sozinho"